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QUANDO OS HOMENS MORRIAM À FOME - Alma dos Livros

QUANDO OS HOMENS MORRIAM À FOME

O segundo livro de Eric H. Cline publicado em Portugal centra-se num dos períodos mais conturbados da História Mundial. Leia aqui um excerto do Cap. I da novidade que acaba de chegar às livrarias.

UM GOLPE RÁPIDO DE FACA NA GARGANTA, desferido por um assassino, pôs fim a trinta e dois anos de reinado do faraó Ramsés III do Egito em 1155 a. C. Duas décadas antes, Ramsés tinha obtido uma imensa vitória sobre os Povos do Mar, mas era agora vítima de uma sórdida conspiração de harém desencadeada por uma das suas próprias mulheres, Tiye, e por um filho menor chamado Pentawere.

O assassínio, agora conhecido como «Conspiração do Harém», chamou a atenção dos egiptólogos modernos pela primeira vez há cerca de 150 anos. Os pormenores estão contidos em cerca de seis papiros, alguns, ou todos, podem ter sido originalmente parte de um único pergaminho, que foi cortado em secções por um ladrão de antiguidades empreendedor antes de ser vendido a várias pessoas, em vários lugares. O mais longo destes documentos é atualmente conhecido como o «Papiro Judicial de Turim», alojado (talvez não surpreendentemente, dado o seu nome moderno) no Museu Egípcio de Turim, em Itália. Foi originalmente adquirido por Bernardino Drovetti, o cônsul-geral francês no Egito no início do século XIX; este vendeu-a ao rei da Sardenha; e acabou por ficar acomodado no Museu Egípcio.

O papiro contém muitos dos pormenores dos quatro julgamentos dos seus acusados. A conspiração terá sido arquitetada por Tiye, que desejava que o seu filho com Ramsés III, o príncipe Pentawere, ascendesse ao trono. Chegaram a ser acusados quarenta conspiradores, tanto membros do harém como funcionários da corte, que foram julgados em quatro grupos. Alguns deles foram culpados e condenados à pena de morte; vários foram forçados a suicidar-se no próprio tribunal. Pentawere estava entre os condenados à morte, e presume-se que o mesmo tenha acontecido à sua mãe, embora não haja registo do julgamento desta.

Embora se soubesse que Ramsés III morreu antes dos veredictos deste caso, estes documentos não esclarecem se a conspiração foi bem-sucedida, e a questão foi deixada em aberto pelos egiptólogos. Mas, ao que parece, a conspiração teve mesmo êxito, embora este facto só tenha sido revelado em 2012, quando foram efetuadas tomografias ao corpo de Ramsés III, que tinha sido encontrado mais de um século antes, em 1881, no complexo de múmias de Deir Elbari, perto do templo mortuário de Hatshepsut. Teria sido transportado para lá ser guardado pelos sacerdotes no início da XXII Dinastia, no fim do século x a. C., após uma série de roubos de túmulos reais, que se estenderam por mais de um século. Conforme relatado no British Medical Journal, era evidente que a garganta de Ramsés fora cortada. A faca afiada que causou a ferida tinha-lhe sido cravada no pescoço imediatamente abaixo da laringe, até à vértebra cervical, cortando-lhe a traqueia e todos os tecidos moles em redor. A morte foi provavelmente instantânea, ou quase. Mais tarde, no processo de embalsamamento, foi posicionado sobre a ferida um amuleto protetor do olho de Hórus, quer para proteção ou para cura, embora fosse demasiado tarde para ajudar o rei na sua vida corpórea. Além disso, puseram uma gola grossa de linho à volta do pescoço para esconder a marca da facada. Foi apenas na TAC que os cientistas conseguiram ver através do tecido grosso e identificar o ferimento que matou o rei.

Um segundo corpo, de um homem de 18 a 20 anos, conhecido como «Homem Desconhecido E», foi encontrado com Ramsés III no complexo real de Deir Elbari. Envolvido numa pele de cabra ritualmente impura e não devidamente mumificado, foi sugerido que o corpo seria o do príncipe culpado, Pentawere. Os testes de ADN indicam que poderia ter sido filho de Ramsés III, mas esta conclusão não é de modo algum universalmente aceite na egiptologia. As provas forenses, incluindo contorções faciais e ferimentos na garganta, sugerem que terá sido estrangulado.

O assassinato deu o tom para os séculos seguintes no Egito, já que os anos que se seguiram à sua vitória sobre os Povos do Mar não foi agradável. Por exemplo, temos agora provas de que uma seca de enormes proporções, sobre a qual há documentos que a estendem de Itália ao Irão (em termos modernos), na minha opinião, foi um dos principais tensores que levou ao Colapso da Idade do Bronze Final, que acabou por atingir o Egito mais ou menos por esta altura. Isto aconteceu porque o caudal do Nilo ficou reduzido quando a precipitação diminuiu no planalto etíope, uma situação que durou cerca de duzentos anos. Este facto, sem surpresa, conduziu, por sua vez, a uma crise alimentar e, consequentemente, à fome no Egito, bem como a problemas económicos conexos, incluindo o não pagamento de salários, que culminou numa greve e na manifestação dos trabalhadores de Deir Almedina no 29º aniversário de Ramsés no trono — possivelmente um dos primeiros registos de ações industriais da história.

Com a morte de Ramsés III, esta era da história egípcia também terminou, embora os seus filhos e netos tenham continuado a dinastia por mais quatro décadas. Ainda que a cultura e a sociedade egípcias não tenham entrado em colapso e os egípcios não tenham desaparecido da Terra, a sua reconfiguração para a nova ordem mundial não foi particularmente bem-sucedida após o Colapso da Idade do Bronze. Embora tenham sobrevivido, a sua capacidade tornou -se muito reduzida; já não seriam tidos como parte das «Grandes Potências» de então, como o tinham sido durante o apogeu das XVIII e XIX dinastias. Em vez disso, no decurso dos dois séculos seguintes, os egípcios ficaram reféns de governos repletos de intrigas, para não falar de problemas de sucessão e de rivalidades que, ocasionalmente, resultavam em dois, três e, por vezes, até quatro governantes em diferentes partes do Egito ao mesmo tempo. Ocasionalmente, surgia um líder forte, como Sisaque I, um governante líbio que fundou a XXII Dinastia, mas isso só viria a acontecer em 945 a. C., mais de duzentos anos após a morte de Ramsés III, e não duraria muito tempo.


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Os oito faraós que se seguiram a Ramsés III tiveram, todos, o mesmo nome (IV a XI), e nos seus reinados assistiu-se a uma deterioração constante da situação do Egito. Os dois primeiros reis, Ramsés IV e V, estiveram no trono durante apenas dez anos e pouco fizeram que mereça ser mencionado. Há também questões intrigantes em torno da morte deste último, pois pode ter sido vítima de mais uma calamidade — a doença — que estará associada ao Colapso da Idade do Bronze. A sua múmia tem pústulas ainda visíveis no rosto, o que leva a pensar que terá morrido de varíola por volta de 1140 a. C., o que pode ser corroborado por textos que referem a escavação de novos túmulos para si e para outros membros da família. Os homens que fizeram a escavação tiveram, posteriormente, direito a um mês de licença «a expensas do faraó» (ou seja, com salário completo), após o que o Vale dos Reis foi fechado aos visitantes durante seis meses, talvez como uma espécie de quarentena.

No reinado de Ramsés V, o Egito continuou a controlar as minas de cobre em Timna, na península do Sinai, mas é o nome do último faraó egípcio que se encontrará nessa região. Da mesma forma, o seu sucessor, Ramsés VI, será o último faraó cujo nome se encontra nas minas de turquesa de Serabit el-Khadim, também situadas no Sinai. Este facto é normalmente visto como um indício de que os egípcios tinham perdido o controlo e/ou retirado quase totalmente
do Levante meridional por volta de 1140 a. C. Curiosamente, uma pequena base de estátua de bronze encontrada em Megido pela expedição de Chicago na década de 1930 tem inscrita a cartela de Ramsés VI e é frequentemente citada como prova de que o Megidocananeu não havia sido tomado até então, mas encontrava-se num contexto controverso e, como tal, não podia ser utilizado para sustentar tais argumentos.

Quando Ramsés VI morreu em 1133 a. C., os trabalhadores que lhe construíam o túmulo no Vale dos Reis enterraram acidentalmente o túmulo de Tutankhamon, que se encontrava ao seu lado, deixando-o para que Howard Carter e lorde Carnarvon o descobrissem em 1922. O seu filho subiu ao trono, por sua vez, como Ramsés VII. Não sabemos muito sobre o seu reinado, mas os textos dos dez anos (ou menos) durante os quais governou indicam que o preço dos cereais subiu em flecha e que a economia era instável.

Da mesma forma, após um breve reinado de apenas um ano para Ramsés VIII, que, como filho de Ramsés III, era provavelmente já velho quando se tornou faraó, os problemas continuaram para o governante seguinte, Ramsés IX (ca. 1126–1108 a. C.). Esteve no trono durante 18 anos, durante os quais os problemas se agravaram no Egito, nomeadamente sob a forma de roubos de túmulos, fome e perturbações causadas por «estrangeiros» junto da aldeia dos trabalhadores em Deir Almedina. Pode ter sido nesta altura que o Egito perdeu, pela primeira vez, o controlo da Alta Núbia e das minas de ouro aí situadas. É também possível que o domínio do Egito se tenha dividido durante o seu reinado, pressagiando uma ocorrência comum nos séculos seguintes.

Entre os documentos legais deste período, encontram-se os «Papiros do Roubo do Túmulo», como passaram a ser conhecidos. Estes são uma dúzia ou mais de textos, que abrangem os reinados de Ramsés IX a XI, que incluem o chamado «Papiro de Abbott» e o «Papiro de Leopold-Amherst», do décimo sexto ano do reinado de Ramsés IX. Neles, encontramos descrições pormenorizadas de roubos de túmulos na necrópole real, bem como em cemitérios privados.
A maior parte das pilhagens tinha aparentemente ocorrido neste décimo sexto ano. Alguns dos ladrões de túmulos foram apanhados e as confissões foram extraídas durante os interrogatórios e julgamentos subsequentes. Os ladrões eram, todos, condenados à morte, muito provavelmente por empalamento, uma vez que essa era a sentença habitual para o roubo de túmulos reais. No entanto, os roubos tinham começado muito antes, pois sabemos que, algures antes do nono ano do reinado de Ramsés IX, os ladrões assaltaram o túmulo de Ramsés VI. Mais uma vez, alguns dos assaltantes foram apanhados. Num papiro fragmentário de Liverpool, em Inglaterra, conhecido como «P. Mayer B», um dos presos confessou especificamente: «Passei quatro dias a arrombá-lo [o túmulo real], sendo nós cinco. Abrimos o túmulo e entrámos. Encontrámos um cesto em cima de sessenta caixas.» De seguida, descreveu ter encontrado caldeirões de bronze, lavatórios de bronze e vários outros objetos também de bronze. Abriram ainda duas arcas cheias de roupa, que são descritas em pormenor. O facto de serem mencionados objetos de bronze, e não de ouro, é especialmente interessante e pode ser um reflexo do declínio da prosperidade desde os
dias de Tutankhamon.

Excerto de Depois de 1177 a.C. (páginas 35-40)

«Brilhante… Uma obra soberba.» Kirkus Review

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