Em entrevista, a tradutora de Um País sem Amor partilha o desafio emocional e linguístico de transportar para outra língua a intensidade humana presente no romance de Yaroslav Trofimov. Tem a palavra Sónia Maia.
Este é um romance profundamente enraizado na história e na memória ucraniana. Que desafios enfrentou ao traduzir uma obra onde o trauma coletivo e a emoção pessoal se entrelaçam tão intensamente?
A meu ver, uma das grandes riquezas deste livro é precisamente o paralelismo entre a história de um país e a história de uma família. Na verdade, um país é composto pelo conjunto de pessoas que nele vivem, e as vivências coletivas são a combinação das experiências de cada um dos seus habitantes. Assim, o trauma coletivo resulta da soma de inúmeros traumas pessoais causados pelas mesmas circunstâncias, assim como a resiliência do povo ucraniano emerge da resiliência demonstrada por muitas pessoas ucranianas perante as mesmas adversidades. O facto de estas vicissitudes nos serem apresentadas do ponto de vista individual, em vez de se reportarem, genericamente, à entidade coletiva de todo um povo, aproxima-as do leitor (e do tradutor), humaniza-as e desperta uma empatia reforçada. Isto pode ser desafiante, por aumentar o envolvimento emocional, mas torna também a leitura (e a tradução) do livro uma experiência muito mais vívida e marcante.
A escrita de Yaroslav Trofimov tem um registo simultaneamente jornalístico e poético. Como conseguiu equilibrar a precisão factual com a musicalidade da linguagem?
Nesta obra, são relatados factos verídicos que fazem parte da história da Ucrânia, e também as angústias, dúvidas, dilemas, dificuldades, medos, pequenas vitórias e superações vividas pelas personagens em consequência desses factos. Narram-se acontecimentos, mas também a forma como esses acontecimentos moldaram as vidas dos que os viveram. É, pois, inevitável usar uma linguagem mais objetiva na descrição dos factos e um registo mais sentimental ao abordar emoções. No entanto, estes dois pendores linguísticos não são estanques, dado que muitos dos factos referidos carregam, em si mesmos, um forte peso emocional. Cabe ao tradutor manter e transpor para a língua de chegada a harmonia e o equilíbrio entre o estilo informativo e a representação subjetiva de experiências pessoais, por vezes violentíssimas. O autor fê-lo magistralmente, e eu fiz o meu melhor para não desmerecer essa excelência.
Em Um País sem Amor, há uma constante tensão entre o ideal e a sobrevivência. Como é que essa tensão se manifesta no próprio texto (por exemplo, nas escolhas de palavras, no ritmo ou nas pausas) e de que forma a traduziu para português?
Sendo o tradutor um veículo de transmissão para outra língua de todo o conteúdo de um texto, incluindo emoções, mensagens implícitas, subtexto e até o tom e a forma de expressão de cada personagem, e sendo ele, ao mesmo tempo, um ser humano, é difícil não interiorizar todos esses elementos, sentindo-os como uma experiência pessoal antes de os plasmar num novo texto. Deste modo, a forma desse novo texto, o seu ritmo, a linguagem e a carga emotiva resultam não só de opções conscientes, mas também da vivência do texto pelo tradutor. Logo, é natural que, em trechos de grande intensidade emocional, a linguagem seja mais expressiva e o ritmo acompanhe o fluxo dos sentimentos revelados. Também em contextos de contraste entre o ideal de vida e a vida imposta pela necessidade de sobrevivência, o sofrimento daí emergente é sentido pelo tradutor e refletido no texto, através de expressões mais cruas, frases mais duras e construções textuais por vezes até bruscas.
Há passagens de grande carga emocional, como as que evocam a fome ou a guerra. Enquanto tradutora, como lida com textos que têm uma intensidade emocional tão marcada? Procura distanciamento ou deixa-se envolver?
A minha experiência de tradução é sempre muito pessoal: sofro, alegro-me, entusiasmo-me, indigno-me, em suma, mergulho na história e na personalidade das diferentes personagens. Este livro ilustra na perfeição o que é uma obra capaz de desencadear toda uma panóplia de emoções, algumas delas com bastante intensidade. Com efeito, são-nos aqui descritos acontecimentos terríveis, cujas repercussões na vida das personagens nem sempre passam pela superação; testemunhamos também a miséria e a morte, que foram o destino de muitos. Ao mesmo tempo, o autor retrata ainda a face mais negra do ser humano: o abuso de poder, a crueldade, a insensibilidade. Por tudo isto, é um livro que causa, inevitavelmente, alguma angústia, e ao mesmo tempo desperta empatia e compaixão. Nestes casos, não tento proteger-me nem distanciar-me, até porque estou certa de que não o conseguiria. Ao invés, tento transmitir, através da linguagem e da forma de escrita, os sentimentos que esses temas me despertam.
O título original, No Country for Love, tem uma ressonância poética e ambígua. Como foi o processo de adaptação para Um País sem Amor? Que nuances procurou preservar e que outras emergiram em português?
Inicialmente, inclinei-me para o título Neste País Não Cabe Amor, por me parecer expressar a ideia veiculada pelo título original de que aquele país não seria um lugar onde o amor pudesse florescer. O título Um País Sem Amor foi sugestão da editora e, a meu ver, uma excelente escolha, pois sugere a mesma ideia de um país abandonado pelo amor numa frase mais curta e mais fácil de reter… ao mesmo tempo que não fecha a porta à hipótese de, um dia, a Ucrânia receber, finalmente, a sua dose de amor.
Por fim, a tradução também é uma forma de mediação cultural. Que aspetos da cultura e da memória ucranianas quis tornar mais acessíveis ao leitor português; ou há algo que, inevitavelmente, «se perde» na passagem entre línguas?
Naturalmente, cada obra tem sempre algo de intraduzível, visto que o autor faz parte de uma cultura específica, com o seu imaginário próprio e as suas interpretações únicas. No entanto, a tradução pode facultar ao leitor o acesso a muitos aspetos da cultura impregnada no texto original, não se ficando pela descrição de factos históricos: por exemplo, retratando a adesão a hábitos e tradições, transmitindo a envolvência de ambientes, o sentimento de pertença a determinadas geografias e realidades, as crenças e convicções dominantes. Neste livro em específico, encontramos a vivência do dia-a-dia nas aldeias e nas cidades, os alimentos preferidos, a importância conferida aos espetáculos como circo, cinema e teatro, o apego à cidade-natal e aos seus elementos carismáticos, a manutenção íntima da religião mesmo quando oficialmente proibida, as diversas interpretações dos regimes vigentes e tantas outras facetas que nos permitem conhecer um pouco melhor o povo ucraniano. No fundo, é esta a função social da tradução: dar a conhecer a leitores de outras línguas universos que, de outra forma, lhes estariam vedados devido à barreira linguística.






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